MAKE / REMAKE: O HOMEM INVISÍVEL NA NETFLIX

Por Adilson Carvalho

A literatura de ficção científica sempre se orgulhou de seu visionarismo, como no submarino Nautilius ou na viagem à lua idealizados por Júlio Verne –muitas décadas antes de sua concretização. Encabeçando a lista de avanços ainda não realizados está a invisibilidade, imaginada pelo escritor britânico H.G.Wells (1866-1946) não como o resultado de uma mágica, mas como um soro capaz de impedir a reflexão e a refração da luz.

De lá para cá, o mundo mudou e a produtora Blumhouse assumiu a responsabilidade de tentar reiniciar o dark universe. O projeto, que nos seus estágios iniciais teve o nome de Johnny Depp atrelado a ele, foi refeito como uma história de relacionamento abusivo em “O Homem Invisível”. A trama se desenvolve em torno da personagem de Cecilia Kass (Elizabeth Moss, de “The Handmaid’s Tale”) e de seu ex-marido, cuja aparente morte a deixa uma mulher rica. O diretor e roteirista Leigh Whannell foi feliz na decisão de jogar o foco da história na vítima em vez do monstro. Cecilia (Moss) é perseguida por seu ex-marido, que desenvolveu a invisibilidade. O tema ganha a luz da atualidade por tratar de um relacionamento abusivo, em sintonia assim com a atualidade ao tratar não apenas de uma violência física, mas também psicológica. Poderíamos estar ouvindo a melódica “Woman in Chains”, da banda Tears for Fears já que tanto a canção quanto o filme tratam um assunto tão delicado de forma a chamar a atenção uma vez que os números de feminicídio ainda são assustadoramente altos . Sendo assim é curioso que um filme intitulado “Homem”, saiba se identificar tão bem com a mulher atual. A modernização da história de H.G.Wells ainda funciona por tratar da vulnerabilidade diante de avanços tecnológicos que violam a privacidade, sobretudo fazendo juz à essência do material adaptado.

Claude Rains no filme de 1933

Essa reinterpretação consegue fazer bom uso desse legado com os monstros do mundo moderno, ampliando os ecos de opressão vivida ainda por milhares de mulheres presas a relacionamento tóxicos. Quanto à forma, Whannell ainda se permite enveredar pelo thriller hitchcockiano, colocando sua heroína solitária diante de uma ameaça que a deixa muitas vezes à beira da insanidade. Em uma era muito anterior ao CGI, a primeira adaptação da história foi um triunfo técnico para simular a invisibilidade de Claude Rains no filme de 1933, dirigido por James Whale, o mesmo de “Frankenstein” (1931). Publicado originalmente em capítulos na revista semanal de Pearson em 1897 e lançada como um romance no mesmo ano. O homem invisível do título é Griffin, um cientista que dedicou-se à pesquisa em sistemas óticos e inventa uma maneira de mudar o índice de refração de um corpo para que ele não absorva nem reflita a luz e, assim, torna-se invisível. Ele realiza com sucesso este procedimento em si mesmo, mas falha em sua tentativa de reverter isso, enlouquecendo gradativamente. A imagem de Claude Rains envolvido em bandagens não impressiona o público de hoje, e Leigh Whannel não tenta replicar o feito, mas cria uma atmosfera envolvente seguindo o caminho de que o não visto causa muito mais terror, e o uso de câmera subjetiva tem seu valor. No filme, Cecilia parece estar mergulhada em estado de paranoia, como a vida moderna parece nos infundir. Não é exagero afirmar que o embate entre Cecília (Moss) e o vilão invisível, vivido por Oliver Jackson-Cohen (de “A Maldição da Residência Hill”) certifica que os monstros do passado da Universal podem ser criativamente reimaginados –seja em sua forma em ou sua temática.

O tema musical de Benjamin Wallfisch é essencial para emoldurar o isolamento da protagonista sem precisar cair no clichê do “jump scare” (técnica usada com o intuito de assustar o público) gratuito que o gênero muitas vezes acaba por empregar. O efeito é permitir uma cumplicidade com a personagem que consegue ser vulnerável na medida certa, mas que desperta para a bravura de uma Sarah Connor, ou uma Ellen Ripley, só para lembrar alguns personagens femininos icônicos do cinema. Cecilia enfrenta seu nêmesis oculto cuja genialidade só é superada por seu ilimitado sadismo. O cinema já mostrou o potencial militar de uma camuflagem invisível em “O Predador” e nas naves romulanas de “Star Trek”, mas coube a Elizabeth Moss enfrentar essa ameaça não como uma super heroína dos quadrinhos, mas como uma mulher que não aceita mais ser refém de um jogo doentio. E que se descobre capaz de se reerguer forte e corajosa –se fazendo, antes de tudo, visível. (Disponível na Netflix desde 13 de setembro)

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