por Sérgio Cortêz

Escrito por Machado de Assis em forma de folhetim de março a dezembro de 1880 e publicado pela Revista Brasileira, o romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” só ganharia o formato de livro no ano seguinte, através da antiga Typographia Nacional (atual Imprensa Nacional).
O romance marca o início do Realismo no Brasil (estilo que só seria suplantado no final do século XIX pelo requintado Parnasianismo), apresentando um Rio de Janeiro embebido em pessimismo e indiferença, onde a escravidão, as classes sociais e o positivismo possuem uma influência marcante na sociedade.
Leitores, críticos e escritores destacam que uma das grandes qualidades de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é o fato de o romance preceder uma série de elementos de vanguarda que só seriam assimilados e ampliados no século XX. Trata-se, portanto, de um trabalho revolucionário e inovador, que até hoje é alvo de estudos e interpretações, além de traduções para os mais diferentes idiomas.
* O Protagonista, Um Bon-Vivant

A autoria da história é atribuída a Brás Cubas, o falecido protagonista que almeja escrever sua autobiografia. Nascido numa típica família abastada do século XIX, ele dá início à obra com a funesta dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”.
Não obstante, Brás Cubas fala sobre seu funeral e explica sua causa mortis: uma pneumonia contraída enquanto desenvolvia o “Emplastro Brás Cubas“, fantasia farmacêutica superestimada por seu criador e com a qual esperava garantir um lugar de destaque na posteridade. A partir desse ponto inicia-se o desenrolar da história, ao passo em que Machado de Assis reúne, capítulo a capítulo, os elementos que fazem de “Memórias Póstumas” uma obra única.
* Personagens Marcantes

Além de Brás Cubas, outras personagens têm grande importância ao longo da história e que bem poderiam ter existido na vida real, com qualidades e defeitos inerentes a qualquer ser humano, independente da época:
– O desafortunado Prudêncio, menino filho de escravos, que servia de brinquedo na infância de Brás Cubas;
– A sedutora e vivaz Marcela, “amiga de rapazes e de dinheiro”, meretriz que se tornou, na adolescência de Brás Cubas, “Um amor que durou quinze meses e onze contos de réis”;
– A fogosa Virgília, mulher do deputado Lobo Neves, com quem Brás Cubas se envolve quando ambos eram solteiros: tempos depois iniciam um relacionamento adúltero, que fazia “trepidar” a velha casa na Gamboa;
– Quincas Borba, o filósofo levemente biruta que apresenta a Brás Cubas um novo pensamento filosófico, o Humanitismo – e que também rouba o relógio do amigo de infância, devolvendo-o a posteriori, após superar a mendicância e tornar-se um homem próspero graças a uma generosa herança;
– Nhá-Loló, moça de 19 anos com quem Brás Cubas engata um curto noivado, pois a pretendida morre de febre amarela – levando o noivo a tornar-se um solteirão convicto a partir de então;
– Após alguns anos de boêmia e devassidão em Coimbra, Brás Cubas retorna ao Rio de Janeiro onde corteja Eusébia, a “Flor da Moita” – mas não leva o romance adiante porque a jovem, embora fosse bela, era coxa. “Por que bonita se coxa?” indagava-se Brás Cubas.
* O Epílogo

Ao longo da narrativa, a morte abraça outras personagens como Bento Cubas, pai de Brás Cubas, o deputado Lobo Neves, a prostituta Marcela, dona Plácida – a conveniente moradora da casa na Gamboa (ou, no linguajar mais popular, do “cafofo”) e Quincas Borba. Quanto a Brás Cubas, é a partir de sua própria morte que começa a contar (de trás para frente) a história de sua vida.
* A Publicação da Obra

Publicado pela primeira vez “aos pedaços” – como escreveu o próprio Machado de Assis (ou seja, em folhetim, pela Revista Brasileira, de março a dezembro de 1880) – foi editado em 1881 pela Typographia Nacional, que produziu cerca de quatro mil exemplares na época.
A França foi o primeiro país estrangeiro a ter “Memórias Póstumas de Brás Cubas” nas livrarias, em 1911 (o lançamento fazia parte do contrato entre o autor e o editor Baptiste Louis Garnier, proprietário da Livraria Garnier). Mas a obra ganhou versões em italiano, espanhol, inglês, dinamarquês, servo-croatas, alemão, catalão e até esperanto.
O livro teve o que costuma ser entendido como uma continuação, lançada em 1891: “Quincas Borba”, romance no qual Machado de Assis explora certas peculiaridades humanas que flutuam entre algumas virtudes e muitas falhas de caráter, demonstradas por diferentes personagens ao longo da história – incluindo Rubião, o afortunado e melancólico mineiro que a protagoniza.

* Nas Telonas
“Memórias Póstumas de Brás Cubas” foi a principal referência de um longa-metragem na década de 1960 e ganhou posteriormente duas versões para o cinema.
– As Referências “à francesa” de “Viagem ao Fim do Mundo” (1967):

Rodado ao estilo “cinema experimental”, o filme “Viagem ao Fim do Mundo”, dirigido por Fernando Cony Campos, apresenta algumas referências ao romance de Machado de Assis. Dessa forma, é um equívoco considerá-lo uma versão, já que seu roteiro possui vida própria ao apresentar as diferentes situações vividas pelos passageiros de um avião (o que nada tem a ver com a obra de Machado de Assis). Acrescentemos a isso os longos e enfadonhos discursos de natureza ideológica que fazem o filme assemelhar-se mais a uma película de Jean-Luc Godard que à obra-prima machadiana.
Poderíamos comparar tal equívoco ao de um escultor que monta o que denomina “sua versão para Mona Lisa” usando argila, caca de pombo e peças de um Ford Escort: a obra de Da Vinci seguiria intocável no Museu do Louvre, enquanto o escultor na verdade a teria apenas como uma referência para sua sucataria. Assim é “Viagem Ao Fim do Mundo”.
– 1ª versão: “Brás Cubas” (1985)

Dirigido por Julio Bressane, “Brás Cubas” pode ser considerado de fato a primeira versão cinematográfica do livro, levando-o às telas com relativa fidelidade o texto original. Talvez porque na época fosse um ator ainda inexperiente, Luiz Fernando Guimarães fica devendo na interpretação do papel-título – algo que, no entanto, não desabona o filme como um todo.

2ª versão: “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (2001)

Rodado na década de 1990 e lançado somente em 2001, o filme constitui a versão mais fiel à obra de Machado de Assis. Dirigido por André Klotzel, traz Reginaldo Faria como Brás Cubas após os 60 anos de idade, e Petrônio Gontijo interpretando Brás Cubas no auge de sua juventude. Destaque também para a reconstituição de época, um dos pontos mais fortes do filme.
* Revisitando Machado de Assis

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839 e faleceu na mesma cidade a 29 de setembro de 1908. É considerado por muitos críticos o maior nome da literatura do Brasil, quiçá da própria Língua Portuguesa.
Machado de Assis era filho de um descendente de negros alforriados e de uma portuguesa. Assumiu, ao longo dos anos, diversos cargos públicos e obteve grande notoriedade em jornais nos quais publicava suas poesias e crônicas. Foi também fundador e primeiro presidente unânime da Academia Brasileira de Letras. Sua extensa obra soma dez romances, mais de duzentos contos, dez peças teatrais, cinco coletâneas de poemas e sonetos e quase setecentas crônicas, que lhe garantiram grande prestígio tanto no Brasil como em países vizinhos.
Considerado introdutor do Realismo no Brasil, sua primeira fase literária é constituída de obras que flertam com o Romantismo, enquanto sua segunda fase relaciona-se com a ironia, a crítica social e o pessimismo, ainda que, paradoxalmente, alguns traços românticos permaneçam. Influenciou grandes nomes das letras, como Olavo Bilac, Lima Barreto, Carlos Drummond de Andrade, o norte-americano Donald Barthelme e muitos outros.
Além de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, merecem igual destaque obras como “Ressurreição”, “A mão e a luva”, “Dom Casmurro”, “Memorial de Aires”, “Helena”, “Contos Fluminenses”, “Histórias da Meia-Noite”, “O Alienista” e, claro, “Quincas Borba”.
Para celebrar a memória de Machado de Assis, a coluna Prelo e Película apresenta aos visitantes o trecho final do último capítulo de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, intitulado “Das Negativas”. Com a palavra, Machado de Assis – ou, se o leitor assim o preferir, Brás Cubas.
“Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais: não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
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Dicas da Coluna – Onde Encontrar:
Você pode comprar “Memórias Póstumas de Brás Cubas” numa belíssima edição em:
https://redir.lomadee.com/v2/335d7180d0a
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Se preferir, é possível adquirir um box com as principais obras de Machado de Assis:
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Visite o Beco da Poesia e conheça o trabalho literário de Sérgio Cortêz.
Acesse: https://bit.ly/2Zyd1cp
Adorei relembrar esse belíssimo texto!
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Excelente texto Sérgio, de uma obra prima da literatura
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Muito obrigado, Adilson. O texto resultou de uma pesquisa muito agradável. Machado de Assis é o melhor, inigualável.
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Muito grato pelo privilégio de sua leitura, Anna Maria. Sinta-se sempre bem-vinda em nosso site.
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