CIENCIA COM POESIA | DUNA

Por Juliana “Supertramp” Diniz & Wanderson Clayton

Aos ecólogos das terras áridas, onde quer que estejam, não importa a época, fica dedicada esta tentativa de profecia, com humildade e admiração.” É assim que Frank Herbert, jornalista e escritor, começa uma das maiores obras de ficção científica da história. Duna foi publicado em 1965 e com o seu grande sucesso comercial ganhou diversas continuações, possuindo uma série principal com cinco livros. Além desses volumes, Brian Herbert, filho de Frank, a partir de 1999 começou a escrever e lançar livros da saga após a morte de seu pai. Esses livros foram elaborados em parceria com o escritor americano Kevin. J. Anderson, expandindo ainda mais o universo da saga, mas foram recebidos com críticas e controvérsias pelo público por se desvirtuarem do propósito original da história. 

O universo de Duna é ambientado em um império intergaláctico feudal, onde cada feudo é dominado por “Casas” nobres. Nesse contexto, o livro acompanha a história do jovem Paul Atreides, herdeiro da Casa Atreides, enquanto sua família é transferida para o planeta Arrakis, o único lugar do universo que produz uma especiaria de inestimável valor para toda a galáxia. Dessa forma, Frank Herbert criou o que hoje é considerado um dos pilares da ficção científica moderna, cunhando diversas características marcantes desse gênero que se tornaram bases da cultura pop. Por exemplo, em uma época em que as ficções eram cercadas de tecnologias para construir seu cenário futurístico, Herbert criou um universo em que as máquinas estão extintas e todas as operações complexas são realizadas por humanos. Além disso, o livro foi o primeiro grande romance de ficção científica ecológico, popularizando o conceito de ecologia sistêmica e explicando como as preocupações ecológicas de Duna são semelhantes às que enfrentamos na vida real. Nesse contexto, é  importante lembrar que antes de Star Wars, Blade Runner, Alien e tantos outros marcos da cultura pop, já havia Duna

Falando também sobre cinema, o livro teve sua primeira adaptação em 1984 pelas mãos de David Lynch que, apesar das intensas críticas na época em que foi lançado, hoje é considerado um clássico cult. Mais recentemente, tivemos a adaptação de Denis Villeneuve em 2021, que consagrou-se como um grande sucesso pela crítica. Desse modo, muito mais do que um aventura épica, Duna é uma rede intrincada de discussões e analogias sociais, políticas, econômicas, religiosas, filosóficas, linguísticas e, acima de tudo, ecológicas. Neil Gaiman, na introdução da edição do livro publicada em 2016, afirma que Herbert compreendia a ecologia em uma escala planetária, e que, enquanto as pessoas apenas começavam a engatinhar no entendimento de que a vida no planeta seria um sistema extremamente complexo, interconectado e interdependente, Duna já estava lá, pronto para elas. 

E, por meio desse conceito,  começamos a nos dar conta da meaestria com a qual a obra foi idealizada, sendo capaz de  unir ciência e literatura como poucas vezes pôde ser visto. Iniciemos nossa análise… Existe um pequeno trecho em Duna, logo no início do apêndice “A Ecologia de Arrakis”, que diz: “Kynes colocou seus recém treinados limnólogos fremen para trabalhar”. Bem, antes da análise propriamente dita, preciso confessar que sendo eu estudante de biologia e integrante de um laboratório de pesquisas em  limnologia, realmente tive um pequeno (porém intenso) acesso histérico ao ler isso, como boa nerd que sou. E, mais do que uma limnóloga em formação, integro  o grupo de estudos sobre restauração de áreas degradas e, mais do que isso, também sou uma aguerrida defensora e apaixonada pelo conceito dos sistemas agroecológicos, a integração e eventual suprema comunhão do homem com a natureza (liberdade poética autorizada para inserção de um arco-íris e borboletas revoando na composição visual deste parágrafo). Nem é preciso explicar muito mais o motivo pelo qual Duna toca fundo no meu coração. As vertentes da biologia presentes no livro são tão absurdamente extensas que eu precisei de muito tempo até decidir sobre qual delas me debruçaria. Realmente poderíamos passar horas discutindo sobre a fisiologia dos vermes de areia, sobre o complexo mecanismo dos captadores de vento e o ciclo da água de Arrakis, sobre os oceanos de Caladan, a neurociência dos opioides e isso sem nem falar sobre todas as questões linguísticas, filosóficas e psicológicas (porque sim, por aqui somos nerds por completo. Mas espere, será que se desenha uma segunda análise para Duna…). Depois de muita indecisão eu decidi que o foco seria mesmo na ecologia, a grande protagonista da história, presente explicitamente ao longo de toda a narrativa, com um pequeno enfoque em restauração de áreas degradadas entre outras coisinhas mais. 

Bem, o que sabemos de Arrakis é que o planeta é um imenso deserto hostil, com uma escassez tão extrema que a população nativa (os fremen) é obrigada a reaproveitar e consumir a água do próprio corpo para sobreviver. Sabemos também que o planetólogo imperial tem um sonho, herdado de seu pai e passado para todos os fremen, de transformar a paisagem de Arrakis e adequá-la à vida humana. “Água a céu aberto, plantas verdes e altas e pessoas andando livremente por aí, sem os trajestiladores.”, essa é a descrição que o livro traz. Entretanto, em um ponto da história, descobrimos que num passado distante havia água a céu aberto em Arrakis. Então a pergunta que devemos nos fazer é: O que aconteceu para o planeta chegar nesse ponto? O que é capaz de transformar florestas em desertos?

Provavelmente, o que ocorreu no planeta foi uma intensa desertificação. Esse é um processo de empobrecimento da umidade e degradação dos solos pela seca excessiva e prolongada, com rápida perda de nutrientes resultando em extinção da vegetação local e desaparecimento dos corpos hídricos, podendo ter causas tanto naturais quanto antrópicas (humanas). Falando especificamente desta última, todas as práticas de agropecuárias extensivas, desmatamento, uso inadequado e intenso de agrotóxicos, ações de queimadas e mudanças climáticas são ações que contribuem para esse processo. Não sabemos se o que houve em Arrakis foi natural ou provocado pelo homem, mas no nosso planeta é fato que nós estamos sendo os agentes causadores. Segundo dados da ONU, dois terços do planeta estão sofrendo um processo de desertificação e,  se nenhuma medida for adotada, perderemos em 2050 uma superfície de terras agrícolas equivalente a toda a terra cultivável da Índia, que é essencial para manter a biodiversidade e alimentar a população.

Nesse contexto, como os fremen compreendem bem a dura realidade de sofrer com perda da cobertura vegetal, falta de água e insegurança alimentar por conta da perda de espécies e áreas cultiváveis, eles têm um plano. Ao longo da narrativa nos deparamos com pequenas passagens que explicam como a paisagem de Arrakis será transformada, e o que os fremen estão fazendo é um plano de restauração baseado no processo natural de sucessão ecológica. A sucessão ecológica nada mais é do que o processo gradativo de colonização de um habitat em que a composição das espécies daquele local vão se modificando progressivamente até atingirem um estágio chamado clímax. Podemos ver esse processo sendo descrito em um trecho do livro por Liet Kynes, planetólogo imperial, quando ele diz que primeiro eles começarão cobrindo o solo, introduzindo gramíneas nas dunas para elas prenderem o solo, depois que a umidade estiver presas nas pastagens, eles passarão a criar florestas de terras altas e depois alguns pequenos corpos de água a céu aberto. Existem diversas passagens como essa ao longo de todo o livro, todas descrevendo o mecanismo de sucessão dos ecossistemas. Dessa forma, o que ocorre é que o ambiente vai sendo colonizado e criando estratificações, cada uma mais intrincada e diversa que a outra, até chegar em um ponto em que existe uma rede complexa e estável de relações entre vários organismos distintos, estabelecendo equilíbrios autossustentáveis. “A vida aprimora a capacidade do ambiente de sustentar a vida”, disse Liet Kynes.  E onde nós entramos nisso tudo? Herbert sintetiza bem isso nas frases “A verdadeira riqueza de um planeta está em sua paisagem, na maneira como participamos dessa fonte fundamental da civilização: a agricultura” e “Para o planetólogo prático, o instrumento mais importante são os seres humanos. É preciso cultivar o conhecimento ecológico entre as pessoas”. O homem integrado na paisagem natural e atendendo suas necessidades com o menor impacto possível,  isso é a agroecologia. Em um sistema agroecológico, a agricultura é realizada através de uma perspectiva ecológica, produzindo alimento de forma integrada, um local onde árvores e comida crescem lado a lado, assim como na natureza. Um cultivo de baixo impacto ambiental, comida sem veneno, pessoas integradas ao sistema, manutenção da biodiversidade local, segurança alimentar, resgate dos saberes tradicionais, essas são apenas algumas das belezas de praticar agroecologia.

Para mim, Duna é o ápice da educação ambiental lírica, uma inspiração de como fazer ciência sem ser prolixo. Nessa obra, Herbert conseguiu, com êxito, nos entregar uma espécie de profecia balizada no conhecimento científico, e eu  imagino como ele estaria hoje, vendo que ela se torna real. Duna mostra que existe um caminho, um plano possível, mas acho que a questão principal é se realmente há interesse em executá-lo. Interesse de todos, incluindo o meu e o seu. O relógio está correndo e, citando um trecho de “Blue Bird” do controverso Bukowski:

…e isso é bom o suficiente para

fazer um homem 

chorar, mas eu não

choro, e

você?

Eu sou Juliana “Supertramp” Diniz,  e agora te convido a expandir sua mente e contemplar a ciência que eu vi em “Duna”.

Música: Kashmir – Led Zeppelin

Para também ouvir: 

To Tame a Land- Iron Maiden: inspirada diretamente em Duna, a letra conta a trajetória da vida de Paul.

Echoes- Pink Floyd: Para mim, passa um sentimento de receio, estranhamento, confusão, desolação, melancolia, freneticidade e imprevisibilidade, igual Paul sentiu em Arrakis.

Iron Man- Black Sabbath: A melodia e letra me passam muito a personalidade de Paul no segundo livro da saga, Messias de Duna. Uma coisa meio “herói relutante” que agora está de mãos atadas vendo o mundo colapsar e a raiva crescendo dentro dele.

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