Por Adilson Carvalho

Era 8 de setembro de 1966 quando fomos levados – pela primeira vez – a bordo da nave estelar Enterprise e desembarcamos em um planeta quente e árido para entregar suprimentos a um casal de cientistas. Acompanhamos, a partir de então, a caçada a uma estranha criatura que mata os tripulantes da nave, tendo estes todo o sal do corpo inexplicavelmente extraído. O episódio descrito era “The Man Trap” e apresentou, ao público norte-americano, o seriado televisivo que se tornaria um fenômeno sem precedentes na história do gênero, Jornada nas Estrelas, hoje chamado apenas pelo seu nome original Star Trek.

O caminho, no entanto, que levou ao lançamento da série foi longo e árduo. Ela só foi aprovada depois de dois pilotos gravados, sendo que o primeiro – entitulado “The Cage” – foi inicialmente reprovado e muito depois reaproveitado posteriormente em dois episódios. Nele, o capitão da Enterprise era Christopher Pike (Jeffrey Hunter, o intérprete de Jesus Cristo no clássico Rei dos Reis, de Nicholas Ray) e seu primeiro oficial era uma mulher (Majel Barret). Seu criador, Gene Roddenberry, era um ex policial de Los Angeles que se tornou roteirista de TV ainda nos anos 50. Roddenberry queria falar de temas que eram, na época, considerados tabus dentro do meio como racismo, guerra fria ou antibelicismo, mas que passariam despercebidos dos censores devido à roupagem fantasiosa da ficção científica. Série aprovada o elenco foi formado por William Shatner (Capitão James Tiberius Kirk), Leonard Nimoy (Sr. Spock), Deforest Kelley (Dr. Leonard “Bones” McCoy), James Doohan (Sr. Scotty), Nichelle Nichols (Tenente Uhura), George Takei (Sr. Sulu), Walter Koenig (Sr. Chekov), Majel Barret (agora no papel da Enfermeira Chapel) e, nos primeiros episódios Grace Lee Witney (Ordenança Janice Rand), que saiu da série por problemas de alcoolismo, e porque os produtores queriam que o Capitão Kirk não tivesse um interesse amoroso fixo.

Tivemos episódios como “Let there be your last battlefield”, “A taste of Amargeddon” ou “A private little war” que questionavam a natureza humana e suas motivações, traçando paralelos com assuntos como a guerra do Vietnã ou a luta pelos direitos civis. Além disso, os roteiros de grandes nomes como Richard Matherson, Robert Bloch ou Theodore Sturgeon levariam personagens e espectadores por universos paralelos, planetas inóspitos e viagens no tempo, como no premiado episódio “City on the edge of forever”, escrito pelo renomado Harlan Ellison e laureado com o Hugo Awards (prêmio literário dado ao gênero sci-fi). Outro episódio memorável é A Wolf in the Fold, que postula que Jack o estripador é uma entidade imortal que migra de planeta em planeta. O elenco carismático e bem entrosado em cena garantia a empatia do público, embora os roteiros explorassem principalmente o trio Spock-Kirk-McCoy – uma trindade que conflitava os lados emocionais e racionais representados respectivamente pelo rabugento médico de bordo e o lógico primeiro oficial, restando ao intrépido e mulherengo capitão equilibrar os dois lados a cada missão da Enterprise. O orçamento não era dos melhores e cada episódio era filmado ao longo de seis dias da semana, mostrando viagens espaciais anos antes do homem ir à lua e, embora não fosse a primeira série do gênero, era certamente a mais adulta em sua linguagem. Inúmeras invenções que fazem parte de nosso dia a dia foram idealizadas nas aventuras da Enterprise como os comunicadores portáteis que lembram nossos celulares, os discos de gravação da nave que são os Cds e Dvds que usamos e um computador de mão (tricorder) que é protótipo de nossos tablets e I-pads. Se por um lado, a série tentava tornar crível todo um futuro idealizado, por outro lutava bravamente para se manter no ar, o que o fez ao longo de 3 temporadas e 79 episódios, sempre ameaçados pelos executivos da NBC que não tinham a visão de perceber o produto que tinham nas mãos, mesmo com as milhares de cartas enviadas ao estúdio pedindo o não cancelamento da série.

As sucessivas reprises ao longo das décadas seguintes atestou o interesse do público por aquela utopia galáctica de uma humanidade unida desbravando o espaço sideral, liderados pelo destemido capitão Kirk (o ator canadense William Shatner) à frente de uma tripulação multiétnica que simbolizava a confraternização dos povos, o que incluía um anglo-saxão – o engenheiro-chefe Sr.Scott (James Doohan), um oriental – o navegador, Sr.Sulu (George Takei), um russo – em uma época de plena guerra fria – o alferes Sr.Chekov (Walter Koenig) e uma africana – a oficial de comunicações, a Tenente Uhura (Nichelle Nichols) cujo papel foi icônico, sendo a primeira a protagonizar um beijo entre um homem branco e uma mulher negra na Tv americana, e isso, numa época de constantes conflitos pelos direitos civis. O ativista pela igualdade étnica , o pastor Martin Luther King, seria assassinato quando a série estava encerrando sua segunda temporada. Em 1966, a atriz Nichelle Nichols descobriu que o estúdio retinha cartas a ela endereçadas e se sentia desgostosa pelo preconceito racial que sofria, decidindo, por isso, abandonar Jornada nas estrelas. Contudo, ao conhecer pessoalmente Martin Luther King, a atriz reconsiderou sua decisão ao ouvir do próprio o quão fundamental era sua presença na série por quebrar com os estereótipos sofridos pelos negros. No episódio Plato’s stepchildren a série quebrou paradigmas com o primeiro beijo inter racial da TV entre Kirk e Uhura.

A popularidade dos atores aumentou ainda mais após o fim da série. O ator Leonard Nimoy chegou a escrever e lançar em 1975 (Dois anos depois do clássico desenho animado produzido pela Filmation) o livro “I am Not Spock” tratando de suas relações com o personagem e estabelecendo as diferenças entre o icônico personagem e o homem que, então, buscava novos papéis. Vinte anos depois, curiosamente, Nimoy lançou o livro “I am Spock” apaziguando suas memórias com o personagem que eternizou seu nome e o tornou parte indelével da cultura pop. Em 1976, a Nasa batizou um ônibus espacial de Enterprise e chamou Roddenberry e o elenco da série para a cerimônia do lançamento. De lá para cá a tripulação original esteve em 6 filmes, e a saga de Roddenberry se desdobrou em diversas séries e derivados, além de um bem sucedido remake criado por J. J. Abbrams. Sem dúvida, a jornada continua, seguindo com a primeira estrela à direita. A série original está disponível pela Netflix.