Por Juliana Supertramp Diniz & Wanderson Clayton
A Máquina do Tempo, uma das obras pioneiras do gênero da ficção científica como conhecemos hoje, é o romance de estreia do escritor britânico Herbert George Wells, mais conhecido como H. G. Wells, publicado em 1895. O livro acompanha o personagem conhecido como “O Viajante do Tempo”, cidadão da alta classe inglesa do século XIX, enquanto narra sua jornada ao ano de 802.701 para seus colegas. Nesse futuro distante, o cientista encontra os Eloi, seres passivos e dóceis, descendentes dos humanos, que vivem em completa harmonia idílica e aparentam ter alcançado a paz e a felicidade plena. Entretanto, quando sua Máquina do Tempo desaparece misteriosamente, “O Viajante” se vê obrigado a explorar esse novo mundo do futuro para encontrá-la, acabando por adentrar numa extensa rede de túneis onde, para seu espanto, encontra os Morlocks, uma raça subterrânea que também habita esse novo mundo.

Apesar do conceito de viagem no tempo ser precursor a Wells, A Máquina do Tempo é considerada umas das primeiras obras a abordar essa ideia através de um ponto de vista tecnológico, utilizando um veículo que possibilita um deslocamento realizado de modo intencional e preciso. Com o seu grande sucesso, o livro foi adaptado para o cinema em 1960, 1978 e 2002, sendo a primeira a mais aclamada e ganhadora do Oscar de melhores efeitos especiais. Além disso, a história também foi adaptada para uma peça de teatro em 1949 que foi transmitida ao vivo pelo canal britânico BBC. Infelizmente, não existem gravações dessa apresentação. Bem, antes de começarmos a explorar os conceitos científicos presentes na “Máquina do Tempo”, preciso ressaltar alguns aspectos importantes da vida de Wells, para que as nuances textuais desse paralelo e a inserção do conceito científico identificado na história possam ser melhor compreendidos. Com relação ao aspecto sociopolítico, Wells veio da classe proletária inglesa, trabalhando desde cedo para ajudar com as despesas de casa. Essa infância foi determinante para a formação de seu caráter ativista desde jovem, tendo sido membro da Sociedade Fabiana, uma organização socialista britânica. Desse modo, esses aspectos moldaram a escrita de Wells, que além do caráter futurista, por muitas vezes também foi considerada como profética, ainda que, inegavelmente, recheada de críticas sociais. Outro fator determinante para a sua literatura, foi a graduação de Wells em Biologia, tendo estudado na faculdade com Thomas H. Huxley, um dos principais defensores públicos da teoria da evolução de Darwin (publicada em 1869) e avô de Aldous Huxley, autor de Admirável Mundo Novo. Então, não é difícil imaginar o quanto as teorias Darwinianas foram determinantes na construção da narrativa e do estilo literário de Wells, principalmente nesse seu primeiro romance.
Tendo em vista os aspectos mencionados acima, é curioso que as discussões em torno de A Máquina do Tempo, na maioria das vezes, fomentem apenas discussões acerca de conceitos da Física que balizariam a façanha de se viajar através do tempo, conceitos estes que, aliás, quase nem são explorados pela narrativa. Sim, isso mesmo. Se você esperava por uma análise científica da obra que que discutisse a viabilidade de capacitores de fluxo temporais, ou se 1.21 Gigawatts seria a quantidade de energia necessária para impulsionar um destemido viajante do tempo em seu estiloso bólido autopropelido através do continuum espaço-tempo, bem, na análise desta aventura temporal as coisas seguem em outra direção. Em contrapartida, os elementos sociais e biológicos que tanto influenciam a obra de Wells, estão presentes de modo explícito ao longo de todo o texto, estruturando de fato a sua narrativa, sendo curioso o fato de que, por vezes, acabam passando despercebidos. Nesse contexto, Wells se vale de um conceito da biologia evolutiva para fundamentar toda a sua narrativa após o grande mistério da obra ter sido revelado: o conceito da “Especiação”, que nada mais é do que o surgimento de novas espécies a partir de uma população ancestral.

Esse fenômeno normalmente segue os seguintes passos: População ancestral → População se divide → Populações divergem → Populações se reencontram. Na natureza, o surgimento de barreiras geográficas é um dos principais fatores responsáveis pela separação física de uma população em diferentes grupos. Essas barreiras podem ser rios, montanhas ou até mesmo ilhas oceânicas. Com esse isolamento espacial, esses grupos de indivíduos agora estão expostos a diferentes condições ambientais, e começam, gradativamente, a acumular diferenças referentes a sua alimentação, comportamento e até mesmo suas morfologias. Essa evolução independente de cada grupo culmina, eventualmente, num ponto em que essas duas populações não são mais geneticamente compatíveis. Nesse caso, elas estão isoladas reprodutivamente e, em um possível reencontro, esses indivíduos não se entrecruzariam ou produziriam descendentes férteis. É importante destacar que existem outros modelos de especiação, que se diferem em relação a importância do isolamento geográfico como causa primária da divergência, esse que foi explicado acima, denominado “alopátrico”, é apenas uma das possibilidades existentes para que novas espécies se originem. No livro, conseguimos traçar um paralelo entre cada uma dessas etapas e as reflexões do “Viajante do Tempo” sobre o futuro. Por exemplo, temos a seguinte fala após seu primeiro encontro com os Morlocks: “O Homem não havia se mantido como uma espécie única, mas se ramificado em dois animais diferentes”. Mais adiante temos: “Primeiro, tomando como base os problemas de nossa própria época, pareceu-me claro como a luz do dia que a chave para tudo era o aumento gradual da distância social, meramente circunstancial, que existe entre o capitalista e o operário.” E ainda continua: “A indústria perdeu o direito de existência ao ar livre. Ou seja: teve que descer mais e mais, produzindo fábricas subterrâneas cada vez maiores, num ambiente em que os trabalhadores eram forçados a passar cada vez mais tempo, até que, no fim…”. Em relação aos “Eloi”, ele diz, “Por outro lado, a tendência de os ricos levarem uma vida cada vez mais exclusivista faz com que porções consideráveis da superfície da terra estejam sendo isoladas em seu benefício”. Por fim, ele concluiu: “Assim, no final teremos os Ricos habitando a superfície, levando uma existência em busca de prazeres, conforto e beleza; e, no subsolo, os Pobres, os Trabalhadores, adaptando-se cada vez mais às condições do trabalho”. Escolhi essas passagens justamente porque elas exemplificam bem o processo de especiação sendo usado por Wells na sua história. Nesse caso, a teoria criada pelo “Viajante do Tempo” é que a separação da espécie humana teve sua origem nas desigualdades sociais, isolando os proletários em regiões subterrâneas das cidades, enquanto a elite ocupava a superfície.

Essa separação em ambientes distintos fez com que esses dois grupos sociais evoluíssem de modo independente ao longo do tempo, divergindo em duas espécies com características comportamentais e morfológicas extremamente distintas. Os “Eloi”, descendentes dos Ricos, são seres apáticos, de intelecto definhado, possuindo uma forma humanoide de baixa estatura e sem distinção clara de gênero. Em contrapartida, os “Morlocks” sofreram modificações físicas mais extremas, sendo descritos pelo “Viajante do Tempo” como uma forma inumana e maligna. Além disso, são extremamente mais agressivos, possuindo uma pele esbranquiçada, olhos enormes, cinzentos, avermelhados e sem pálpebras capazes de refletir a luz (para os fãs de “O Senhor dos Anéis” que desejam uma melhor representação visual, basta imaginar um “Gollum” super peludo).

E para saber o resultado do reencontro dessas duas espécies que tiveram sua origem na ruptura social, convido vocês a realizar a fantástica leitura de A Máquina do Tempo, do visionário escritor H. G. Wells. Posso assegurar que, ainda que metaforicamente, a especiação vai atuar, dando origem a um novo indivíduo logo após o término dessa leitura.
Eu sou Juliana “Supertramp” Diniz, e agora te convido a expandir sua mente e contemplar a ciência que eu vi em “A Máquina do Tempo“.
Música: Dogs- Pink Floyd