Por Adilson Carvalho

Vivemos tempos em que a privacidade é luxo e embora acreditemos na idealização da democracia, esta constantemente é ignorada e a liberdade de existir parece posta em cheque debaixo de nossos olhos. A exposição midiática, por exemplo, cumpre uma profecia atribuída ao artista plástico Andy Warhol de que “cada pessoa tem seus 15 minutos de fama“, o que na prática se estende além do tempo preconizado. Nas sombras, manipulações editam e reeditam a verdade ao sabor dos que detêm o poder e regem assim nossas vidas tal qual o escritor britânico George Orwell (1903-1950) escreveu no romance 1984, pai das realidades distópicas que se popularizaram na literatura e no cinema. No livro, publicado em 1948 (invertendo os dois últimos dígitos do ano para nomear a obra), o mundo, dividido em três países: Oceania, Eurasia and Eastasia, é governado por um regime totalitarista em que todos são vigiados pelo Grande Irmão (Big Brother, te diz alguma coisa ?). Winston Smith, protagonista da narrativa, é funcionário do Ministério da Verdade, encarregado que o status quo esteja sempre de acordo com os interesses dos poderosos. Não há, nesta realidade não há espaço para o individualismo, para o pensamento próprio, sequer para as relações humanas. O amor é um sentimento censurado e o sexo somente permitido para a procriação da espécie, quando interessante ao Estado. Enquanto trabalha, ele observa Julia, uma jovem que faz a manutenção das máquinas de escrever do ministério. Winston suspeita que ela seja uma espiã anarquista, e desenvolve um ódio intenso por ela. Ele suspeita vagamente que seu superior, o oficial do Partido Interno O’Brien, faz parte de um enigmático movimento de resistência subterrâneo conhecido como Brotherhood, formado pelo rival político do Big Brother, Emmanuel Goldstein. Um dia, Julia entrega secretamente a Winston um bilhete de amor, e os dois começam um caso secreto. Julia explica que também detesta o Partido, mas Winston observa que ela é politicamente apática e não tem interesse em derrubar o regime. A relação dos dois se torna uma ameaça para o Estado e assim Orwell conduz sua narrativa onde o indivíduo se rebela contra o poder totalitário que os regem.

Orwell escreveu o livro ao final da Segunda Guerra, embebido na polarização nascida com a Guerra Fria, e imaginou como seria o mundo caso os nazistas vencessem. O uso de vigilância 24 horas restringe as liberdades, não muito diferente do que vivemos hoje. A manipulação de fatos é um mal invisível entre nós, e as ideologias são distorcidas e resumidas a polos antagônicos cada vez mais radicais. Orwell, que acreditava firmemente no socialismo democrático e era membro da esquerda anti-stalinista, modelou a realidade de seu livro sob o socialismo autoritário da União Soviética na era do stalinismo e nas práticas muito semelhantes de censura e propaganda na Alemanha nazista. De forma mais ampla, o romance examina o papel da verdade e dos fatos nas sociedades e as maneiras pelas quais eles podem ser manipulados.

Logo no ano da primeira publicação do livro, no ano de 1948, foi feita uma adaptação para o rádio, para a NBC americana. A televisão tratou de fazer o mesmo em 1953 nos Estados Unidos, pela CBS em sua série Studio One, e na Inglaterra pela BBC em dezembro de 1954. O cinema chegou com a primeira adaptação em 1956, dirigida por Michael Anderson (A Volta ao Mundo em 80 Dias) com o trio principal de personagens vividos respectivamente por Edmund O’Brian – Jan Sterling – Michael Redgrave. Este teve o nome de seu personagem modificado de O’Brian para O’ Connor. Sonia Orwell, viúva do escritor, ficou extremamente irritada com a mudança no final da história, e pediu que o filme fosse retirado de circulação. No livro a história termina de forma nada esperançosa, com Winston e Julia presos e reeducados para reintegrar o sistema, depois de ser revelado que o movimento de resistência era uma farsa. O filme teve dois finais filmados: Um mostra Winston Smith gritando “Abaixo o Grande Irmão”, após o que ele é prontamente baleado pela polícia. Julia é abatida quando se aproxima de seu corpo morto. Na versão americana, lançada em DVD, Smith faz exatamente o oposto e acaba gritando “Long Live Big Brother”, mas Julia não aparece em lugar algum. A segunda versão foi realizada no ano que dá título ao livro, e também quando os direitos autorais foram renovados para evitar de cair em domínio público. Dirigido por Michael Radford, o filme trouxe John Hurt como Winston, Suzanna Hamilton como Julia e Richard Burton (em seu último papel no cinema, como O’Brian. As filmagens foram realizadas em abril, maio e junho de 1984, exatamente o período em que a história se desenrola originalmente. Ainda houve uma versão russa em 2023 dirigida por Diana Ringo. Além do cinema, a história também foi adaptada várias para o teatro, ópera e até balé, sem mencionar a inegável influência do texto orwelliano em outras obras do gênero. Sob a luz da inegável realidade distópica que podemos perceber em nossa volta, a história serve como uma alerta, também ouvido em canções como Proteção da Plebe Rude que diz “Toda angústia do povo é silenciada / Tudo pra manter a boa imagem do Estado / Sou uma minoria mas pelo menos falo o que quero apesar da repressão”. Seja na música ou na literatura, estejamos alerta !“. 2024 seria então 1948 ou 1984, depende de como você vê.