GALERIA DE ESTRELAS | SPENCER TRACY

Adilson Carvalho

Uma das lembranças mais antigas que tenho dos filmes que assisti em minha infância é a imagem de um pescador português humanizando um menino resgatado do mar. Na ocasião, com nove ou dez anos, eu não sabia que aquele ator formidável, dono de um sorriso que irradiava dignidade, já havia falecido. Sei hoje que minha cinefilia foi enriquecida por ter conhecido o pescador Manuel, o padre Flanagan, o advogado Adam Bonner, o ciumento papai Stanley, um velho pescador, o homem de um braço só, todos … Spencer Tracy.

Marujos Intrépidos

Spencer Bonaventure Tracy costumava dizer que atuar não era tão importante “Acting is not an important job in the scheme of things” e ainda assim fazia de cada personagem uma imagem marcante e envolvente como o piloto que se torna um anjo da guarda em “Dois no Céu” (A Guy Named Joe)  de 1943 – refilmado por Steven Spielberg em 1989 (Além da Eternidade) ou o dicotômico Jekyl/Hyde em “O Médico & O Monstro” (Dr.Jekyl & Mr.Hyde) de 1941. Tinha um espírito aventureiro e indomável desde criança quando por volta dos sete anos fugiu de casa para brincar no outro lado da cidade, na qual nasceu em 5 de Abril de 1900. Aos 17 tentou se alistar para lutar na Primeira Guerra, mas foi recusado pela idade. Voltou a insistir pouco depois e ingressou na Marinha ao lado do amigo Pat O’Brien, que também se tornou ator. Contudo, nenhum dos dois conseguiu lutar no front, ficando em postos no pátio naval da Virginia.

O Médico e o Monstro

Depois de ter dado baixo no serviço militar, descobriu a arte dramática conseguindo a principio papéis em peças universitárias ainda durante o tempo em que cursou Medicina na Reppon College. Tendo despertado o prazer pela atuação, deixou o curso de Medicina e se juntou a companhias teatrais durante os loucos anos 20, período em que conheceu sua esposa Louise Treadwell já estabelecida nos palcos. Casaram-se em Setembro de 1923. O espírito de coragem indômita, ele demonstrou fosse como o aventureiro Stanley em “As Aventuras de Stanley & Livingstone” (Stanley & Livingstone) em 1939 ou o marinheiro Manuel em “Marujos Intrépidos” (Captain Courageous) em 1937, este sendo o papel que lhe deu o primeiro de dois Oscars. A primeira vez não esteve presente na cerimônia pois estava hospitalizado. No ano seguinte repetiu o feito ao interpretar o Padre Flanagan em “Com Os Braços Abertos” (Boys Town) se tornando o primeiro ator a ganhar como melhor ator em dois anos consecutivos, mérito só igualado por Tom Hanks 58 anos depois. Tracy também se tornou um dos 18 atores a terem sido premiados por um personagem da vida real enquanto este ainda vivia, no caso o Padre Flanagan, que criou uma comunidade para ajudar a tirar garotos da deliquência juvenil. Feito admirável.

São Francisco – A Cidade do Pecado

A carreira cinematográfica do ator começou quando John Ford o assistiu em uma montagem da Broadway, partindo daí um convite para se juntar ao elenco de “Up The River” (1930), que também foi o primeiro filme de outra lenda de Hollywood, Humphrey Bogart. Este foi um entre vários amigos que Spencer Tracy encontrou em sua carreira. O mesmo ocorreu com Clark Gable com quem dividiu a cena em três filmes, sendo o mais memorável deles “San Francisco – A Cidade do Pecado” (San Francisco) de 1935, sua primeira indicação ao Oscar, com apenas 17 minutos em cena.  Dizem que Tracy se ressentia de sempre ficar em segundo plano na história sendo Gable o galã que sempre ficava com a moçinha. Foi a partir de “Fúria” (Fury), realizado no mesmo ano, que o público passou a ver do que Tracy era capaz. A história mostrava um homem pacato que sobrevivia ao próprio linchamento tornando-se amargo e vingativo. Era a estreia do renomado Fritz Lang (Metrópolis) em Hollywood e Tracy não se deu bem com o diretor, chegando a desafiar sua ordens no set quando Lang se recusava a dar um intervalo para o almoço.

ao lado de Katherine Hepburn

Em 1941 durante as filmagens de “A Mulher do Ano” (Woman of the year), o talentoso ator fez o primeiro de 9 filmes com a atriz Katherine Hepburn. Reza a lenda que ela teria dito “Receio que eu seja um pouco alta para o senhor Mr. Tracy ”. Este prontamente teria respondido “Não se preocupe, vou adaptá-la ao meu tamanho Assim começou uma lendária história de amor que o cinema registrou em títulos como “A Costela de Adão” (Adam’s Rib) de 1949, “Amor Eletrônico” (Desk Set) de 1957, “Mulher Absoluta” (Pat & Mike) de 1952 entre outros. Spencer nunca se divorciou de Louise, vivendo com Hepburn o romance adúltero mais incomum do cinema, já que era velado, vivido debaixo dos narizes dos tabloides sensacionalistas. Longe das câmeras o ator vivia um drama pessoal com seu filho mais velho. Tracy e Louise tiveram John Tracy e Susan, sendo que o primogênito perdeu a audição assim que nascera em 1924. Louise abandonou a carreira de atriz, aprendeu a ler lábios e ensinou a técnica ao menino. Em uma época em que não havia nenhum avanço significativo para auxiliar os deficientes auditivos, Spencer e sua esposa criaram a “John Tracy Clinic” em 1943 ajudando pais com filhos surdos, ajudando a desenvolver técnicas de ensino e posteriormente inaugurando um programa para ensinar crianças surdas. A clínica está atuante até hoje e sua atividade pode ser acompanhada on-line no site http://jtc.org/. Tracy garantia as doações de seu cachês e Louise cuidava das necessidades especiais de seu filho com igual dedicação ao lugar. O ator reconhecia a importância do trabalho de Louise e dizia que não havia comparação entre este e seus filmes. Além de Hepburn, conta-se que o ator manteve casos com as atrizes Loretta Young e Gene Tierney. O alcoolismo parecia ser a penitência que pagava pela infidelidade e pela vergonha que Louise passava. A Diabetes era o calcanhar de Aquiles que nos anos que se seguiram lhe minariam a saúde.

Conspiração do Silêncio

Ainda digno de nota é o papel do investigador solitário de um braço só que chega a uma cidade pequena cheia de segredos em “Conspiração do Silêncio” (Bad Day at Black Rock) de 1955, último filme que fez para a MGM, estúdio para o qual trabalhou por 20 anos. A versatilidade era uma marca indelével no talento de Spencer Tracy, transitando por papéis diversos como o western “A Lança Partida” (Broken Arrow) de 1954, a comédia em “O Papai da Noiva” (Father of the Bride) de 1950, ou o drama “O Velho & O Mar” (The Old Man & The Sea) de 1957. Mesmo envelhecido, Spencer conseguia ser incrivelmente natural qualquer fosse o personagem que interpretasse. Nunca ensaiava, raramente repetia tomadas e lia seu texto pouco antes de começar as filmagens graças a uma notável capacidade de memorização. Por volta de 1963 sofreu um ataque cardíaco que o forçou a reduzir os trabalhos. Mesmo assim chegou a ser convidado para viver o vilão Pinguim na série do Batman, antes do papel ser entregue a Burguess Meredith. Teria dito que somente aceitaria se pudesse matar o Batman. Seus últimos filmes tiveram a direção de Stanley Kramer como o juiz no filme de tribunal “Julgamento em Nuremberg(Judgement at Nuremberg) de 1961, o advogado que defende um professor que ensinou a teoria de Darwin em “O Vento será Tua Herança” (Inherint the Wind) de 1960, voltou a fazer comedia em “Deu a Louca no Mundo” (It’s a Mad Mad World) de 1963 e , enfim seu canto do cisne novamente dividindo a cena com Katherine Hepburn em “Advinhe quem vem para Jantar” (Guess who is coming to dinner) de 1967. Neste, Spencer faz um comovente discurso anti-racista cujas palavras ecoam até hoje a quem assiste o filme e nota, inclusive, Hepburn visivelmente emocionada. O filme foi lançado postumamente, bem como sua ultima indicação ao Oscar pelo papel do liberal Matt Drayton. Em seu funeral Katherine Hepburn não compareceu em respeito a Louise, a viúva dele.

Adivinhe quem vem para jantar

Em minha memória ficaram lembranças de um ator vigoroso que fazia tudo com naturalidade invejável. Um dos maiores atores de todos os tempos em uma filmografia de mais 70 títulos, dentre os quais até hoje me faz repetir o mesmo grito emocionado … MANOEL, MANOEL !!! Eu também fui humanizado por ele, que nunca escondeu suas falhas, nunca se supervalorizou, dizia como conselho “Decore suas falas e nunca esbarre na mobília. Sua única pretensão, enfim, era de ser humano. Para mim foi sempre Intrépido.

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