Por Juliana “Supertramp” Diniz & Wanderson Clayton

Escrita em 1912 e publicada somente em 1915, A Metamorfose é uma novela do autor austro-húngaro Franz Kafka, sendo um de seus trabalhos mais proeminentes, citado e analisado com entusiasmo até hoje. Concluída em apenas 20 dias e escrita originalmente em alemão, a obra acompanha a desconcertante história de Gregor Samsa que, ao acordar um dia completamente metamorfoseado em um inseto gigante, passa a vivenciar uma rotina de sofrimento e horror psicológico no exílio a que se autoimpôs, trancado em seu próprio quarto. A partir daí, todo o desespero, raiva, incredulidade e incorfomismo que Gregor experimenta em decorrência de sua repugnante situação, só não fazem frente à insuportável ideia de que, uma vez revelada, sua bizarra condição certamente causaria sentimentos de repulsa e rejeição não só por parte da sociedade, mas também em suas relações profissionais e íntimas. Como zeloso provedor da família, profissional dedicado e cidadão cumpridor de todas as normas e convenções impostas pela sociedade, as quais nunca ousou contextar em detrimento de seus próprios anseios, Gregor precisava desesperadamente se agarrar à crença de que, por conta disso, a súbita perda de sua “humanidade” não despertaria nos outros todo o horror que ele mesmo, agora, nutria por si. Considerada uma das principais obras da literatura mundial, “A Metamorfose” é uma narrativa repleta de simbolismos e críticas à exploração do ser humano pela sociedade capitalista. Kafka guia o leitor através de uma narrativa crua e pragmática, deixando-o propositadamente com uma incômoda sensação de desconforto ao longo de toda a história. Pensamentos reflexivos sobre nossa própria condição humana são inevitáveis durante a leitura.

Enquanto perambulava pela minha estante de livros decidindo qual obra deveria ser explorada neste “Ciência com Poesia”, a história da metamorfose de Gregor Samsa me saltava aos olhos. Apesar de uma gama de livros repletos de conceitos cientificos, à espera dos seus respectivos paralelos líricos estarem à minha disposição, minha mente foi irredutível na decisão de que, falar sobre esta alegoria de Franz Kafka, era o que deveria ser feito. Minha segunda jornada pelo texto confirmou a genialidade implícita na obra. O desconforto que se sente ao longo da narrativa realmente existe e, se está lá, é porque, de alguma forma, você se coloca na posição de algum personagem e, nesse caso, possibilita a reflexão sobre quais circunstâncias da história lhe são familiares. Gregor Samsa resiste o quanto pode para garantir o direito à “humanidade” que jamais pensou poder ser tomada de si. Mas agora que a metamorfose que sofre lhe impõe uma nova forma de “agir” e “ser” como agora realmente é, e não mais como o mundo espera que seja, terá ele esse direito assegurado ou verá sua condição humana ser definitivamente revogada, enquanto é reclassificado como um mero estorvo ao sistema vigente, um indesejado, um rebeliante?
Sob a ótica científica, a análise de hoje se debruça na abordagem morfológica dos insetos. Os insetos fazem parte de um grupo de invertebrados (animais que não possuem vértebras) denominados Hexapoda, que possuem seu corpo dividido em cabeça, tórax e abdômen. Uma das características mais marcantes desse grupo é a presença de uma estrutura rígida e resistente chamada exoesqueleto, que recobre toda a sua superfície. No livro, isso é descrito logo na primeira página quando Gregor acorda. Ele nota a presença de “um ventre marrom nitidamente dividido em ondulações”, “costas duras como couraça” e “numerosas pernas”. Além disso, esses animais possuem em sua cabeça mandíbulas e maxila com uma região cortante, além de antenas dotadas de função sensorial extremamente aguçada. Também no início da narrativa, as “mandíbulas muito fortes” de Gregor tem citação destacada, tendo sido essenciais para que o mesmo conseguisse girar a maçaneta de sua porta e sair de seu quarto. Ao longo da natrativa, podemos acompanhar a evolução do personagem se acostumando com seu novo corpo e aprendendo a utilizar suas antenas.
Outro aspecto interessante a ser destacado é a locomoção de Gregor. Em diversos momentos da história o personagem apresenta dificuldades em se mover, entretanto esse aspecto pode ser atribuído ao estado debilitado em que ele se encontra, já que os insetos adultos possuem adaptações extremamente eficientes em suas pernas e outros apêndices corporais que os possibilitam dinamizar muito esse processo. Um fato curioso sobre a obra é que, mesmo não sendo citado em nenhum momento, é quase um consenso geral que Gregor Samsa se transforma em uma enorme barata. Esses animais, apesar de ocasionarem grande repugnância em nós, humanos, podem ser considerados como um dos exemplos de maior sucesso adaptativo do planeta. Existem fósseis destes organismos que datam do período Cretáceo Inferior, já existindo à mesma época em que os dinossauros caminhavam por aqui. Sua incrível capacidade adaptativa os tornou capazes de sobreviver e prosperar mesmo após inúmeras catástrofes e alterações ambientais sofridas pela Terra desde aquela época. Além disso, como prova de sua incrível resiliência, as baratas podem sobreviver por até uma semana sem cabeça e água, um mês sem alimentação e conseguem segurar seu “fôlego” por cerca 40 minutos quando submersas. De forma surpreendente, algumas espécies silvestres são dotadas de bioluminescência, tais como os vaga-lumes, apresentando ainda extrema importância para a ciclagem dos nutrientes no solo. Um recente estudo publicado em 2019 pela revista Live Science, mostra que as baratas já estão conseguindo adquirir resistência ao veneno em spray, e transmitindo essa habilidade à sua prole. Então, da próxima vez que você estiver prestes a matar uma barata, e seu senso de superioridade humana aflorar, lembre-se que esses animais estão aqui há muito mais tempo do que eu e você e que, na corrida pela perpetuação da espécie, elas já estão a milhões de anos luz à nossa frente.Na obra de Kafka, a transformação morfofisiológica experienciada por Gregor Samsa é abrupta, uma vez que ele dorme humano e acorda inseto. Nos organismos em que a metamorfose é necessária para completar seu desenvolvimento, o processo, entretanto, é lento e gradual, ajustado ao tempo de vida do animal. No caso específico das baratas, a metamorfose é classificada como “incompleta”, pois a fase juvenil (ninfas), recém saída dos ovos, difere apenas um pouco da forma final adulta. Talvez se Gregor tivesse percebido a tempo que a verdadeira metamorfose humana ocorre na mente e não no corpo e, tal como nos insetos, de forma lenta e gradual, entenderia que o verdadeiro conceito de humanidade não reside na “forma”. A “essência” parece ser mais digna da nossa atenção.
Eu sou Juliana “Supertramp” Diniz, e agora te convido a expandir sua mente e contemplar a ciência que eu vi em A Metamorfose.